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Categoria: UncategorizedDom Quixote: um romance além do seu tempo
Publicado: 10/06/2014 as 9:49
É difícil fazer uma seleção de textos literários universais da Literatura Ocidental (ou quem sabe mundial), pois definir um cânone não é algo fácil, além de ser um tanto quanto controverso estabelecer o que é, de fato, essencial. Mas se o fizermos, alguns textos não podem faltar, e entre eles está Dom Quixote.
É incrível que hoje, mais de quatrocentos anos depois de Cervantes ter escrito o primeiro volume do romance, ainda sejamos cativados por um texto com um assunto tão pouco sedutor à primeira vista: as aventuras de um fidalgo que enlouquece depois de ter lido romances de cavalaria em excesso. A partir daí temos um mundo de aventuras divertidíssimas – que também não deixam de ser tristes, afinal, o riso que Cervantes nos provoca ao ler as peripécias do Cavaleiro da Triste Figura são um riso um tanto amargo, que nos faz sentir pena do pobre homem. Conhecemos um escudeiro que é a antítese de Dom Quixote em todos os sentidos: um realista a serviço de um sonhador, um baixinho gorducho a trabalho de um homem alto e esguio, um mesquinho acompanhando um bom coração. Mesmo este, com o correr das páginas, vai ganhando o leitor na sua mudança, mostrando-se cada vez mais fiel ao seu cavaleiro – e sempre na esperança de ganhar a sua tão prometida ilha.
Contudo não podemos limitar a riqueza do primeiro romance moderno apenas nessas duas figuras. Como estrutura, podemos ver algo extremamente moderno no texto: é um dos primeiros romances que fala de outros romances, sendo, até certa altura, um romance que presta homenagem aos seus antecessores, fazendo ao mesmo tempo burla destes – algo extremamente moderno ou mesmo pós-moderno. Isso mesmo, pós-moderno, pois Cervantes nos mostra algo extremamente inovador – e até certo ponto contemporâneo – em seu romance ao mudar o tipo de contato que o narrador tem com o leitor ao dar, por exemplo, voz a um suposto texto escrito em árabe sobre o protagonista, deixando outro narrar ao invés dele mesmo.
Outros temas também surgem com força da obra, como a incompreensão de todos, ou da maioria, frente ao amor de alguém pelos livros e, consequentemente no caso, à Literatura. Talvez mais marcante que a cena dos moinhos de vento, a queima de livros que ocorre logo no começo da trama mostra um fato um tanto quanto perturbador: o ser humano que, em vez de tentar compreender o motivo que alguém a amar os livros, queima-os por temer sofrer do mesmo “mal”.
(Lembremos que Cervantes escreveu durante a Inquisição em plena Espanha católica, ao seja, ele talvez tenha visto livros queimados por motivos fúteis como os que levaram a sobrinha de Dom Quixote a fazê-lo; entretanto, o mais assustador é saber que Cervantes mostrou o movimento que está por trás desse ódio aos livros, movimento esse repetido sucessivamente, mesmo em pleno século XX, por Hitler nas Bücherverbrennug.)
Há ainda um ponto que não pode passar em branco: a influência da obra. Poucos talvez sejam os personagens que mereçam se tornar um adjetivo tão expressivo como o quixotesco. É algo único, que exprime um impulso romântico e desmedido em busca de algo, algo que de certa forma muitos de nós ainda buscam hoje, quem sabe refletindo o mesmo desejo de Dom Quixote em encontrar Dulcineia. Não é à toa que grandes mestres dos mais variados campos da arte o trabalharam, às vezes reinventando-o: Pablo Picasso e seu desenho em nanquim; Orson Welles e seu inacabado Don Quixote; Richard Strauss e seu poema sinfônico (Op. 35, Don Quixote). Porém faço questão de narrar dois personagens que melhor captaram e recriaram a alma do personagem de Cervantes: o príncipe Michkin, em O Idiota de Fiodor Dostoievski, uma mistura da figura do cavaleiro com Cristo; Capitão Vitorino, em Fogo Morte de José Lins do Rego, um sertanejo justo, se bem que muito atrapalhado, que tenta lugar pele seu povo.
Muito mais ainda poderia ser acrescentado, mas nada seria capaz de tomar este magnífico romance por completo.
Fonte: Homo Literatus